domingo, 27 de janeiro de 2013

HONDA NR-750: BELEZA EXTERIOR E INTERIOR




A Honda NR-750 é, aos meus olhos, a mais bela moto já feita.

Linhas perfeitas, casadas numa carenagem integral, como mandava a moda das motos de alto desempenho do começo dos anos 90, e que davam a ela uma fluidez e uma leveza em seu desenho, que não tem como não agradar aos olhos e ao túnel de vento. Olhando para sua foto, parece menor que qualquer outra moto da mesma categoria.



Porém, o que dá fama a esta moto não é sua beleza estética, mas o inusitado motor com pistões ovais.


Ao mesmo tempo em que este detalhe atrai a atenção de todos para ela, a verdadeira razão para este surpreendente motor, fonte de usa real beleza interna, permanece praticamente desconhecida do grande público.

Para entendermos que razão e que beleza são essas, vamos voltar para a essência do motor de ciclo Otto.

Todo motor de ciclo Otto precisa admitir mistura fresca para o cilindro e descarregar os gases queimados, e o controle destes fluxos é feito por válvulas sincronizadas com o movimento do pistão.

As válvulas em forma de tulipa que usamos hoje representam apenas uma de uma variedade imensa de válvulas possíveis de serem usadas nos motores, mas são, de longe, as que melhor oferecem vantagens sobre suas grandes desvantagens.

Contar os detalhes sobre os outros tipos de válvulas é uma longa história, e que terei imenso prazer de contar a vocês nas próximas oportunidades.

Sobre as válvulas convencionais, os projetistas de motores, especialmente os aeronáuticos, logo perceberam alguns detalhes cruciais para a construção de motores eficientes.

A primeira coisa que notaram é que um motor com válvulas no cabeçote era muito mais eficiente que os motores com válvulas no bloco. Na época que a construção de motores ainda engatinhava, e as válvulas no bloco eram fáceis de instalar e serem comandadas por uma árvore de cames engrenada diretamente no virabrequim.

Válvulas no cabeçote significava um mecanismo mais complexo de transmissão de movimento de abertura destas válvulas.

A segunda coisa que notaram é que motores são mais potentes quanto mais tiverem facilidade de admitir e descarregar gases, especialmente em alta rotação. Facilitar a entrada e a saída de grandes fluxos de gases é um objetivo atingível maximizando a área de passagem desses gases.

No começo, os motores usavam duas válvulas por cilindro, e maximizar a área significava aumentar o diâmetro destas válvulas para ocupar o máximo possível do diâmetro do cabeçote.


Mas logo perceberam que era possível fazer mais que isso. Matemáticos logo entraram no caso e determinaram que o melhor formato para maximizar a área de passagem de fluxos pelo cabeçote era construindo uma câmara hemisférica com válvulas orientadas radialmente. Foi determinado que, respeitando o espaço de instalação da vela de ignição, o número de válvulas que maximiza a área de passagem era 5, seguido logo de perto pela configuração de 4 válvulas.


Esta dedução é antiga. Aviões da Primeira Guerra Mundial já voavam com cabeçotes hemisféricos de 4 válvulas.


O que é perfeito na matemática nem sempre é realizável com igual perfeição na prática, e logo isso iria aparecer. A primeira barreira a ser enfrentada era a questão de válvulas dispostas radialmente.

Um bom exemplo desta barreira é observável na tecnologia RFVC (Radial Four Valve Chamber), utilizada pela Honda em suas motocicletas nos anos 70 e 80, e aqui conhecida através da XLX-250, como podemos observar nas fotos a seguir.

Na primeira foto observamos o conjunto de válvulas. É nítida a disposição radial destas válvulas.


Na foto seguinte vemos o conjunto de válvulas tendo o comando passando pelo meio delas. A disposição radial das válvulas cria uma geometria complexa entre as válvulas e o comando. Um balancim simples não conseguiria acionar cada válvula destas a partir do comando central.


A solução encontrada pela Honda foi o uso de dois balancins sobrepostos para cada válvula, como vemos na foto a seguir.


Motores de válvulas radiais oferecem problemas difíceis de serem contornados de forma simples. Pela disposição radial, as válvulas concorrem a um mesmo ponto quando são erguidas das suas sedes.

Como possuem dimensões maximizadas, seu levantamento é limitado pela possibilidade de colisão entre elas. Em cabeçotes de 5 válvulas, o conjunto de três válvulas de admissão muitas vezes é tão crítico que a válvula central precisa ser erguida em atraso em relação às laterais, anulando a vantagem desta configuração sobre um cabeçote de 4 válvulas.

O fluxo das válvulas radiais também oferece dificuldades. Como concorrem para o centro da câmara, os fluxos individuais das válvulas de admissão colidem, criando turbulências parasitas e dissipando parte da energia cinética do fluxo admitido.

Por causa destas dificuldades, a indústria partiu para um modelo simplificador. Em vez de se manter fiel à pureza geométrica da câmara hemisférica com válvulas radiais, adotou-se quase que universalmente o uso de dois bancos laterais de válvulas (um para admissão e outro para escapamento), onde cada banco de válvulas possui hastes paralelas entre si e perpendiculares à linha do comando.

Esta disposição permite construir facilmente motores multiválvulas com comando simples ou duplo, usando acionamento direto ou com um balancim simples, às custas de deformar o ótimo desenho de propriedades anti-detonantes da câmara hemisférica.


Um efeito secundário desejável desta configuração é a configuração de fluxos paralelos entre as válvulas. Por não concorrerem para o centro da câmara de combustão, os fluxos das válvulas se somam, formando uma única e consistente turbulência, cuja circulação possui um eixo paralelo ao do virabrequim, compensando a perda do formato hemisférico quanto à característica antidetonante da câmara de combustão.

A segunda barreira encontrada pelos projetistas de motores se refere à suposta vantagem da disposição de 5 válvulas sobre a de 4 válvulas. Embora exista matematicamente, a diferença numérica entre as duas disposições não é proporcionalmente tão significativa. Na prática, a vantagem pode se inverter.


As válvulas em forma de tulipa são abertas penetrando o interior da câmara. Suas cabeças largas são um obstáculo à passagem dos respectivos fluxos, e oferecem uma resistência a eles para serem contornadas. Quando estão presentes outras válvulas próximas, os fluxos podem interferir mutuamente.

Entre duas válvulas, temos uma interferência, porém entre três válvulas ocorrem duas interferências entre a válvula central e as laterais. Estas interferências prejudicam a passagem do fluxo total e a formação de uma turbulência consistente da mistura a ser queimada.

Como resultado, muitas vezes a terceira válvula de admissão (de uma configuração de 5 válvulas) atrapalha mais do que ajuda.

Cabeçotes de 5 válvulas são praticamente inviáveis para uso em motores com injeção direta de combustível, por não haver espaço para a instalação do bico injetor.

Como resultado, hoje os cabeçotes de 4 válvulas imperam, com raras tentativas de reviver o sistema de 5 válvulas por cilindro. Assim, chegamos ao quadro moderno de distribuição de válvulas.

Entretanto, a Honda, desejosa de obter motores que fossem além desta limitação para suas motos de competição, voltou para a prancheta de desenho, criticando o projeto a partir de sua concepção mais básica.

Da crítica ao modelo convencional de motor, com cilindros de perfil circular, do qual vinham todos os limites impostos, surgia a ideia de um pistão alongado, retilíneo, com um conjunto amplo de válvulas dispostas em paralelo.

A disposição alongada de múltiplas válvulas lado a lado permitia aumentar a razão entre a área de passagem de gases e a área da câmara de combustão muito acima da possível de obter com cilindros circulares.


A disposição dos dois bancos de válvulas paralelas mantinha a facilidade de acionamento conseguido nos motores convencionais, mas o formato da câmara não era deformado como ocorria nestes últimos, melhorando a característica antidetonante da câmara de combustão.

Por fim, a turbulência obtida dentro da câmara alongada, e embalada por bancos de válvulas com angulação apropriada era mais alta e consistente, melhorando a queima da mistura e diminuindo ainda mais a tendência à detonação.


Como consequência, este motor pode operar com taxas de compressão maiores que os motores convencionais.

A Honda testou diferentes configurações de válvulas, mas a que apresentou melhores resultados foi a de 8 válvulas.

Apesar de atingir objetivos técnicos bastante superiores, este motor oferece desafios e desvantagens. A tecnologia de anéis dos pistões é especial, para manter a pressão adequada contra a parede do cilindro e a capacidade de vedação.

Foram necessárias duas bielas por pistão para manter a estabilidade deste durante seus movimentos pelo cilindro.

O formato alongado da câmara criou um caminho muito longo para a frente de chama que queima a mistura, numa situação muito parecida com a dos motores Wankel, obrigando o uso de duas velas de ignição por cilindro.

A massa alternativa do conjunto de pistão e biela são maiores que os convencionais, e o grande conjunto de válvulas exige o dobro da potência de acionamento.


Pelas suas características, é um motor muito mais adequado a competições que ao uso urbano e de produção em massa.

A primeira versão deste motor apareceu na NR-500 de 1979, feita para o retorno da Honda às competições de Grand Prix da categoria de 500 cm³, da qual ela estava afastada havia vinte anos.


O regulamento de Grand Prix fixava o número de cilindros em 4, e suas adversárias usavam motores de dois tempos, enquanto a Honda preferia um motor de quatro tempos. A ideia do uso de pistões ovais e todas as vantagens associadas visavam criar um motor de quatro tempos que rivalizasse em potência com os motores de dois tempos.


Mas esta moto não teve do desempenho esperado. Em 1987, uma NR-750 de competição foi usada numa prova de endurance em Le Mans, mas não terminou a prova. Mas durante a corrida provou que era bastante potente diante das adversárias.

Uma versão de rua da NR-750 foi oferecida ao público em edição limitada em 1992. O objetivo era a homologação do modelo em competições, cujos regulamentos exigiam que o modelo tivesse produção comercial.

A Honda não deixou bem explicada qual a proposta desta motocicleta ao seu público e, fora a curiosidade causada pelos pistões ovais, o alto preço despertou pouco interesse. Para o Reino Unido foram exportadas apenas oito unidades.

Era uma motocicleta respeitável tecnologicamente, mesmo para os dias de hoje. Há quase 20 anos, esta moto já possuía injeção eletrônica com oito bicos injetores e sete sensores, movida por um microcontrolador de 16 bits, e caixa de ar com geometria de dutos selecionável.

O fato do motor da NR-750 possuir pistões ovais é secundário diante de toda revolução na concepção do novo formato da câmara de combustão e do perfeito aproveitamento do conjunto de válvulas.

Na hora de expor sua obra de arte, a Honda apostou no detalhe óbvio e não na revelação da verdadeira beleza técnica que se escondia por trás dele.


Hoje, a tecnologia de pistões ovais está mais do que comprovada para uso em competições. Seu grande sucesso foi, de certa forma, a origem de seu fracasso.

É tão eficiente que é proibida na maioria das categorias mais importantes do esporte a motor. Entre elas, a Fórmula 1.

Embora eficiente, hoje é apenas uma recordação.

Vinicius de Morais disse que beleza é fundamental. A beleza externa é plástica, sensível aos gostos e costumes de cada um e de cada época, e, portanto sempre questionável. A beleza interna, esta sim é atemporal e absoluta.

Mas é inegável que a NR-750 esbanja as duas. E ficou para a História.

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